26/05/2012

Desenho e Música




As minhas recordações da infância e adolescência passam obrigatoriamente pela presença dos meus pais, da quinta, dos carros e dos meus irmãos.
O meu irmão mais velho interessava-se já por outras coisas e afastava-se das minhas brincadeiras.
A presença do mais novo, no entanto, era constante.
Passávamos horas a desenhar em folhas de papel que colocávamos no centro da minha cama, de forma a ficarem acessíveis aos dois, cada um de seu lado, de joelhos no tapete. 
Eu desenhava a lápis os carrinhos do Tonô, carrinhos de modelos que ele adorava e eu reproduzia em desenho à vista.
Também os cowboys, os cavalos e as pistolas eram dos nossos escolhidos para reproduzir a carvão, em pormenores que só as crianças sabem valorizar. Viamos então o "Bonanza" e o "Robin dos Bosques" ainda a preto e branco.
Outra das nossas preferências era a música.
O meu irmão levantava-se muito cedo, começando logo a cantar e a tocar bateria em tudo o que fizesse barulho, de caixas a panelas, para grande desespero da nossa mãe, que o "despachava" para o quarto do fundo na tentativa de descansar, ou pelo menos baixar o som àquele festival diário.
E eu, que nada sabia de música, lá estava presente na escolha do nome do seu "conjunto", no desenho do guarda roupa para os seus espectáculos e como motorista da rapaziada, já que o meu pai me emancipara para poder dar-me a carta de condução e me emprestava o carro, sempre que lhe pedia. Faziamos grupo com os Freires, o Sr Leitão, o Albino e outros com a mesma paixão. Ouviamos o Elvis, os Beatles e os Rolling Stones.
O meu jeito para desenho, não sei onde se meteu.
Nunca cheguei a aprender música, embora tenha alguma sensibilidade para o que é bom (como quase toda a gente), não tendo passado de parte integrante do público.
Mas o mais importante ficou e fez-me companhia em todos os momentos da minha vida, dos mais dolorosos aos mais alegres.
Não sei imaginar a minha vida sem ele, nem como seriam essas recordações sem as nossas risadas.

05/05/2012

De que é feita a saudade?



A boleia
O caminho da quinta era feito várias vezes, diariamente, desde que naquele Natal tinhamos ido para lá viver.
Frequentávamos, eu e os meus irmãos, o colégio no Fundão e o meu pai encarregava-se de nos trazer para as aulas.
No trajecto obrigatório encontrávamos muitas crianças que iam a pé para a escola, estivesse calor ou frio de rachar.
Um ou outro mais pequenino dava a mão ao mais velho, que levava o saco com os livros e a merenda, a alsa atravessada no peito franzino, caminhando junto à berma.
Todos sabiam que se o meu pai passasse naquele momento, cabia sempre mais um.
Enquanto caminhavam, iam espreitando tímidos, os olhos a brilhar, sorriso rasgado, mas sem coragem para pedir. Quando o carro parava e nós abriamos a porta, a cachopada lá se ia encaixando, encavalitados uns nos outros, a rir, sempre a rir, apesar de encharcados ou enregelados, contentes de poder “ir a cavalo”, como eles diziam.
Entre elas, vinha muitas vezes a filha do rendeiro da quinta nossa vizinha, uma miúda ruiva, de pele branca e sardenta, de olhos grandes e muito vivos.
 (O dono era o Dr Fausto, médico na Covilhã e a esposa, uma senhora muito elegante, de cabelo loiro, um pouco misteriosa para mim, já que raramente a via)
O meu pai gostava de a arreliar só para ouvir as respostas que ela tinha sempre na ponta da língua e que dava com sorrisos envergonhados.
Naquele dia o meu pai brincou com o seu cabelo ruivo:
-Então cachopa, a quem é que tu sais com essa cor de cabelo?
Ela riu e desenvolta respondeu:
- À minha patroa.
As gargalhadas do meu pai encheram o carro e todos rimos sem sabermos bem a que é que achara graça, se ao geito divertido da miúda, se à sua resposta.
Os 2 Kms eram feitos por aquelas crianças que viviam nas quintas, a pé, anos a fio, sem queixumes (as escolas não tinham aquecimento e se as crianças chegavam molhadas, assim ficavam das 9 da manhã às 3 da tarde) e sendo felizes com coisas tão pequenas como era aquela boleia.
Já no colégio, lembro os meus amigos das Donas, do Casal, do Souto da Casa, da Aldeia de Joanes e outras aldeias perto do Fundão, que eu via, com alguma inveja, meterem-se à estrada e voltarem a pé para suas casas, em grupos que enchiam a estrada de risadas e de brincadeiras, no fim do dia de aulas.

Amélia

Quantas lembranças renascem de mil vezes lembradas
Olhos de ternura morna, suave, doce
Carinho discreto, tímida carícia
Sorriso presente nas lágrimas de muitas perdas
Coração rasgado tantas vezes e sempre remendado
Amélia, amiga, ama, mãe e amada.

01/05/2012

De que é feita a saudade?


O amigo António Filipe falou-me das suas recordações do Fundão na nossa juventude e do meu pai, como parte  desse passado.
Quem se lembra do meu pai relaciona-o de imediato com a sua escola e com os seus automóveis.
Eu ligo-o a muitos mimos, a muitas gargalhadas, a muitas histórias e a muitos amigos.
As lembranças mais antigas ligadas à sua profissão são de quando era ainda muito pequena, antes de ir para a escola.
Parece que era diabrete e para não estar constantemente de castigo, o meu pai levava-me nas lições de condução. Eu cantarolava, ria com as suas brincadeiras ou dormia durante horas.
Era percurso obrigatório das lições, a ida à quinta, caminho que todos os alunos conheciam de cor, assim como as cerejas, as uvas ou até o vinho que acabavam por provar.
Sorrio ao recordar esses tempos e penso na dificuldade que o meu pai teria agora para se adaptar a tantas regras, tão vazias da paixão que ele punha em tudo o que fazia
Os seus alunos ficavam seus amigos para sempre e eu tive consciência de mim mesma pela primeira vez, como sua filha. 

Abril em Portugal

E já se vai o Abril, para dar lugar ao Maio, que como tudo, começa no 1º.
Antes que termine o Abril, busco algumas lembranças da minha adolescência, já tão distante. Abril era cantado com uma música muito conhecida, com letra adaptada e intitulada “Avril au Portugal”. Eu não entendia porque é que o meu país tinha tido a honra de ser cantado com a língua de Paris. Realmente “Abril em Portugal “ soava mais simplório, mais provinciano. Em francês era mais giro. Comecei por pensar que era por tanta gente da nossa terra estar em Paris. (Assim como pensava que nos filmes de cowboys, quando diziam “mãos no ar”, era para darem um tiro em cada mão).
Mas pouco me demorava nesses pensamentos pois em Abril havia a feira e os divertimentos que vinham com ela. Depois começavam os dias bonitos e já podíamos passear com os rapazes avenida acima, ou estar na esplanada durante o tempo que o dono do café achasse que valia o consumo que tinhamos feito. Aí, nunca era muito tempo, pois quase todos tinhamos o dinheiro de bolso que daria para um café ou um bolo, apenas.
Só que de vez em quando era alertada por alguma conversa diferente, como “o Jornal do Fundão teve problemas com a pide”, “o Sr Armando Paulouro foi incomodado pela pide”, “cuidado com fulano que é informador da pide” e eu perguntava ao meu pai o que se passava.O meu pai não queria que nós falássemos disso e advertia-nos com ar grave. Vieram eleições e achei entusiasmante, mas as pessoas não acreditavam nelas e diziam “votar para quê? Eles não os deixam ganhar”. Então pensava que as eleições eram como uma luta de boxe com golpes baixos.
Mas as pessoas encontravam sempre forma de ter esperança e ficaram cheias dela quando Salazar caiu de maduro e deu lugar a uma maçã da mesma árvore. Tudo parecia mudar, mas eu começava a desconfiar que era mesmo só de nome, mudar de Salazar para Caetano, de pide para dgs, etc.Tive a certeza, quando o meu irmão Tonô, que estava na Faculdade de Direito em Lisboa e vivia comigo, chegou a casa cheio de hematomas provocados pela polícia de choque, que invadira a Faculdade e desancara a “estudantada revolucionária”.
Aconteceu Abril em 1974, e a 25 eu não sabia se era para continuar a ter medo, se era para festejar. Mas o 1º de Maio veio dar-me a resposta e aprendi com o passar do tempo, que era mesmo para festejar.
Este mês de Abril de 2012, o noticiário abriu com a comemoração do aniversário do ditador e cerca de dezena e meia de portugueses, junto à sua campa, tinham ar consternado. O meu encolher de ombros daria por encerrada a notícia, se não fosse a surpresa de ver quem discursava, baixar o papel onde lia o que lhe ia na alma e levantar o braço, em saudação fascista, com orgulho.
Foi como se me desse uma bofetada. Por segundos, voltei a ter medo.

24/08/2011

Oswaldo Montenegro

Metade

29/05/2010

Despedida

Partiu para sempre a D. Lourdes, senhora que eu estimava muito.
Era um elo vivo à minha infância, às brincadeiras do recreio da escola.
Foi um olhar vigilante nos 4 anos em que aprendi as letras, as contas e outras artes.
Sempre que vinha ao Fundão e a encontrava, enchia a minha alma de doces lembranças.
Estava doente, mas tinha uma força fora do comum. Recusava-se a uma queixa ou a um "não consigo". Lutava contra tudo o que a tentasse derrubar.
Na última vez que a vi, estava triste. Chorou quando a abracei.
A incapacidade de permanecer só na sua casinha, obrigara o filho a optar pelo lar de idosos para não lhe faltarem todos os cuidados. Mas ela não estava resignada.
Estava doente, mas muito triste. Cortou-me o coração vê-la assim.
Penso na sua figura esguia e alta, no primeiro dia que a Amélia me foi levar à escola.
No dia 7 de Outubro de cada ano, salvo sábado ou domingo, a escola abria e quem tivesse completado 7 anos, lá ia aprender as ferramentas da vida.
A D. Lourdes, ali estava todos os anos, para receber as crianças.
Gostava de poder lembrá-la sempre com a desenvoltura daqueles tempos, mas a imagem que tenho mais presente, neste momento, é a que vi no último encontro, em que sentada na mesa da pastelaria, recebia os meus afagos com os olhos rasos de lágrimas, numa fragilidade comovente, numa tristeza infinda.
Mas sabia que morava no coração de todas as crianças, que durante várias décadas acompanhou na escola do Fundão.
Sabia bem que eu a estimava muito.
Obrigada. Até um dia!

08/01/2010

Mulheres de preto

No Fundão quando faz frio, é mesmo frio, de cortar a pele e enregelar os ossos.

Lembro-me de ver, quando era pequena, as mulheres das quintas virem à Missa bem cedo, para fazerem depois todos os trabalhos do campo, ou as das aldeias à volta do Fundão virem às compras ao mercado, com os xailes grossos de fazenda de lã pelos ombros e bem apertados com as mãos junto ao peito.

As mulheres não usavam casacos compridos ou agasalhos desse género. Usavam um lenço de lã mais fininha (merino) na cabeça, atado por baixo do queixo e o xaile que colocado em cima do lenço, lhe segurava a ponta e ajudava a resguardar do frio.

Quando o frio era demais ou o agasalho de menos, as mulheres punham o xaile pela cabeça e fechavam-no junto ao nariz.

Há dias, com muito frio e de portas abertas em casa, para entrada e saída de técnicos que vieram consertar os electrodomésticos avariados pelo temporal, senti frio e fui buscar uma pequena manta que tenho junto do sofá, para colocar sobre os ombros.

Foi então que me lembrei das mulheres tão sacrificadas e trabalhadoras da minha terra e coloquei a manta pela cabeça, traçando-a no peito por baixo do queixo, como elas faziam.

É mesmo bom, confortável e quentinho.

As mulheres de preto, que o poeta Eugénio de Andrade homenageou num dos seus poemas, tão fora do que é chique, do que é moda, do que parece bem ou mal, deviam sentir aquela sensação de aconchego, que eu senti.
Gostava de ter um desses xailes.
Mas hoje as mulheres da minha terra já não usam xaile e lenço.

Nota: Imagem muito bela encontrada na net.
Mulheres de preto
Há muito que são velhas vestidas
de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.
Eugénio de Andrade

25/12/2009

Sem Natal

O Natal é a mais violenta festa da Paz!
É triste para quem está só, para quem está doente, para quem cumpre pena numa prisão.
É dor para quem nada recebe dos outros e para quem não tem nada para oferecer ou ninguém a quem o fazer.
É saudade para quem está longe dos familiares ou para quem os perdeu.
É sofrimento para os que procuram emprego, para os que o perderam.
Para os que não têm casa.
Para todos os que não têm esperança.
É a Quadra de quem tem dinheiro, família, casa, emprego, saúde e alegria.
É a festa de quem é feliz.
Para muita, muita gente, o Natal é um período que desejam passar a correr, esquecer, não viver.

17/12/2009

Estrelas no céu escuro.

Uma família amiga dos meus pais viu a sua casa arder e desaparecer no incêndio, todo o seu recheio.
Tal como nós, era um casal com 3 filhos, 2 rapazes e uma rapariga.
Foram viver para nossa casa, enquanto resolveram o problema.
Eu passava o tempo com o filho mais novo, talvez porque a filha era a mais velha dos irmãos e muito senhoril para o meu feitio.
Todos os dias, à noite, depois do jantar, nos sentávamos na janela da sala e olhávamos o céu e as estrelas.
Fazíamos cálculos da distância a que estariam, do seu tamanho, dos estragos que fariam na nossa casa, se caíssem, da proximidade umas das outras, dos seus nomes, de onde teriam vindo, se morreriam, etc.
Nunca tivemos quem nos ensinasse alguma coisa sobre elas, talvez porque éramos apenas crianças, sentadas na janela, a cogitar sobre a imensidão do Universo. Também não tinhamos livros ou internet. Apenas a nossa intuição e sensibilidade nos prendiam a abservar aquele céu profundo com mil pontos brilhantes, que nos atraía e intrigava.
Um dia, a casa do Jorge ficou pronta e ele mudou-se com a sua família.
Eu voltei à janela, onde me sentei como me sentava, espreitei pela grade que fazia varandim, como espreitava, mas nessa noite não se viam as estrelas.
Esperei e olhei atentamente. Pareciam véus negros que se arrastavam frente a uma Lua que se escondia e aparecia como se brincasse comigo.
Convenci-me que as estrelas se tinham mudado com o meu companheiro de serão e achei injusto.
Desisti cedo demais. Se tivesse insistido, tinha visto que a Natureza também tem os seus momentos de tristeza, momentos em que prescinde do seu brilho para ficar aninhada, incógnita, numa noite de nuvens.

Sonhar

Nunca sonhei viver numa cidade grande, mas desejei viver numa rua no centro, sair para tomar um café ou ir ver as montras, sem ter de ir de carro.
Nunca sonhei fazer grandes viagens, conhecer mundos distantes, praias paradisíacas com palmeiras à beira da água de cristal e copos com bebidas coloridas e adornos tropicais, desertos a perder de vista com camelos dolentes, monumentos com história na História do Mundo, mas desejei poder falar com as pessoas que habitam as aldeias, conhecer os seus costumes, provar as suas ementas, meter-me na sua pele, para depois escrever sobre elas.
Nunca sonhei com vestidos caros, com restaurantes sofisticados, com uma companhia masculina de arrasar, mas desejei passear à beira mar de mãos dadas com alguém que sentisse o mesmo que eu, que gostasse das mesmas coisas, que me inspirasse e para quem eu fosse inspiração.
Continuo a desejar visitar Paris, pelo seu romantismo, a Grécia pela sua história e Itália pela sua língua (que parvoíce, dirão).
Sonho com o livro para o qual escolha a capa...
Os meus sonhos continuam por realizar, enquanto a minha vida se esgota em obrigações e hesitações.
Talvez os meus sonhos sejam ousados para as minhas capacidades.
Continuam apenas a ser sonhos.

16/12/2009

Está a nevar!

Está a nevar nas terras altas da Beira.
Aqui está frio, chove e adivinha-se a neve lá longe, na Serra da Estrela.
Aquele frio, a que eu estava habituada na minha adolescência, agora sabe-me bem, talvez pela saudade que tenho da minha juventude e da minha terra.
O casaco comprido, as luvas, o cachecol, eram peças de vestuário obrigatórias para se sair à rua.
Em casa, a braseira era um elemento indispensável. A mesa redonda, com cobertura de fazenda de lã, escondia a braseira eléctrica que aconchegava a família à chegada da rua.
As crianças faziam os trabalhos à volta da mesa.
As refeições eram tomadas ali também.
As camisolas interiores, as malhas de pura lã, o cachecol de angorá, ajudavam ao passieo na rua, sem o desconforto do frio que chegava aos ossos.
Na quinta, gelava a água no tanque e brilhavam os pingentes de gelo nos braços das árvores sem folhas.
Todas as manhãs, a caminho das aulas, viamos os campos brancos de geada e as fogueiras que os agricultores faziam, para ir aquecendo os dedos, que gelavam ao apanhar a azeitona das oliveiras perfiladas.
O pior era a escola... não havia aquecimento, nem que o pátio estivesse coberto de neve.
Não havia casacões de plumas, nem kispos impermeáveis.
Mesmo assim, estudava-se e vencia-se sem que alguém desse por isso.

07/11/2009

Spicegirls de antigamente!

Volto a viajar para o país das minhas recordações tão distantes e tão acarinhadas pelas saudades.
Quando frequentava o Colégio, nos primeiros anos do liceu, tinha "o meu grupo", como todas as miúdas da época.
Trocávamos os nossos segredos mais íntimos, os sonhos, os medos, as alegrias e os desgostos religiosamente. Sabíamos tudo umas das outras.
Tínhamos os mesmos gostos, vestíamos da mesma maneira, usávamos o mesmo penteado, coleccionávamos as fotos dos mesmos artistas.
Nesse ano, estava no top a música dos Rolling Stones, que nós ouvíamos vezes sem conta e sabíamos de cor e salteado.
Sem tocarmos qualquer instrumento, nem sabermos cantar nada de especial, lembrámo-nos de fazer um grupo rock como o dos nossos ídolos.
Éramos meia dúzia de miúdas duma pequena cidade do interior, onde só uma ou outra mais felizarda tinha gira-discos e uns quantos singles, que recebia no dia do aniversário, mas todas com sonhos do tamanho da Serra da Estrela, nossa vizinha.
Juntávamo-nos para ensaiar. A fama era de estudar, mas...
A Lindinha, uma das minhas amigas, vivia no 1º andar do edifício onde os pais trabalhavam - os Correios. Era ali que nos juntávamos a maioria das vezes, por ser perto do Colégio e porque os pais dela nunca estavam em casa.
Então esfalfávamo-nos a cantar o "Satisfation". Ensaiávamos para termos a nossa banda, sentadas na cama da Lindinha, sem sabermos uma nota de música.
A mãe dela, volta e meia deixava o serviço e vinha mandar-nos calar, nervosa e contrariada com o que lhe calhava na rifa!Um dia lembrámo-nos de escrever a alguém importante para nos financiar os instrumentos (3 violas e uma bateria, como era habitual) e finalmente podermos apresentar ao público o nosso talento.
E já que era para ser a alguém importante, de quem nos fomos lembrar? Nada mais, nada menos do que do 1º ministro de Portugal, o Sr Presidente do Conselho de Ministros, o Sr. Professor António de Oliveira Salazar. Nessa altura ele ainda não tinha caído da cadeira e nós eramos novas demais para sabermos da sua importância. Era o presidente e como tal o mais indicado para nos mandar uns trocos para fundarmos o nosso grupo musical...
Que grande desilusão, quando recebemos a resposta do gabinete do Presidente do Conselho de Ministros, informando-nos que não havia verba para aqule fim!
Não havia verba... ora sim, não queriam dar-nos uma ajuda para mostrarmos o nosso grande talento, era o que era.
Quem ficou mais aliviada foi a mãe da Lindinha, que até estranhou o silêncio e se perguntou da razão de andarmos tão cabisbaixas!
Ainda hoje me rio com estas recordações.

06/06/2009

Cerejas e política


No Fundão só ouço falar em cerejas e política.
Cerejas que pouco resistem ao tempo. Política que muda como a Lua.
É agora o tempo delas - das cerejas e da política.
Adoro cerejas. Pena que surjam e acabem na Primavera. Efémeras quanto doces, frágeis quanto irresistíveis.
São o pote de moedas de ouro das aldeias da encosta da Gardunha, os rubis entre folhas de esmeraldas, da Serra com coração de granito, cor de prata.
A floração enche a Gardunha de alegria, de esperança na riqueza que vem a caminho.
Depois é a euforia. As cerejas são expostas em out-doors com fotos sugestivas.São alegremente oferecidas na beira das estradas, como pingos de sangue no colo das mulheres, que todo o ano trabalham na agricultura, sob o sol escaldante do Verão e o ar gelado do Inverno.
Sorriem em caixas ordenadas à porta das mercearias.
Encantam os inúmeros turistas que chegam em autocarros e as procuram com entusiasmo.
Dão nome a arraiais, feiras e festas populares durante todo o mês de Junho.
Quanto à política... falam os que esperam vencer eleições. No entanto, cada vez mais as pessoas se mostram incrédulas, se insurgem contra o espectáculo da caça aos votos, se afastam de discuções e esclarecimentos.
Não conhecem e não querem conhecer nem os candidatos, nem os programas.

Assim vai o meu Fundão, vencendo a terra e os seus frutos, às ideologias e suas promessas.





01/05/2009

Piguy

Piguy era uma cadela muito amorosa, que estava com os meus sobrinhos há alguns anos e era muito estimada por eles, como é usual entre animais e crianças que crescem juntos.
Orelhas muito compridas, que mergulhavam na tigela da água, pêlo castanho dourado muito macio e olhos indiferentes com os desconhecidos, mas meigos com os da casa, era uma "menina" ou antes "uma senhora" cheia de classe.
Nesse Verão, o meu irmão tinha as férias marcadas, quando a Piguy deu à luz uma ninhada. Como não podiam ter mais cães em casa, a pouco e pouco foram dando os cachorrinhos. Praticamente nas vésperas de irem de férias, foi o último entregue oa novo dono.
Como a cadelinha não podia acompanhá-los, pediram à avó, que frequentava diariamente a casa, que olhasse por ela durante aqueles dias.
Um dia, andava eu na minha labuta, recebi um telefonema aflito da avó. A Piguy chorava dia e noite.
A ausência dos meus sobrinhos, a falta dos seus cachorrinhos e a solidão da casa faziam sangrar o seu coração. O pior é que os seus gemidos incomodavam os hóspedes do Hotel mais próximo, que, indiferentes à sua dor, fizeram chegar os protestos ao gerente.
Fui buscar a cadelinha para a quinta, mas estava temerosa com a reacção dos meus cães Serra da Estrela. O Snoopy era ainda cachorro e por isso, muito brincalhão e ciumento.
Ficou fechada no primeiro dia e quem não descansou... fui eu.
No 2º dia trouxe-a para o jardim e sentei-me num canteiro, conversei com ela e mostrei-a ao Snoopy para que se conhecessem e ele visse que ela era da casa.
Ela sentou-se ao meu lado e chorou.
Eu ia falando: - Então Piguy, estás triste? Não tens os teus cachorrinhos...
Ela chorava como uma criança, baixinho e de olhos no chão.
Eu continuava: - O Pedro não está cá, nem a Bagui, nem a Bebé...
Ele gemia e soluçava, como uma pessoa, quietinha a meu lado.
-Mas eles não te abandonaram. Foram de férias e voltam daqui a uma semana. Estou cá eu para tomar conta de ti. Tenho a certeza que nos vamos dar bem e que vais adorar a quinta.
Ela chorava baixinho e não olhava para o cão enorme que se colocara a seu lado.
Eu ia falando e acabei por chorar também. A Piguy estava a sofrer como uma mãe qualquer que perdera os filhos e a sua família.
Daí em diante fui passeando com ela enquanto fazia algumas tarefas na quinta, como ir buscar alguma verdura para os coelhos, os patos, as galinhas, regar o jardim, lavar a varanda e as escadas exteriores, dar uma vista de olhos nas uvas da latada, nas maçãs ainda no pomar.
A cadelhinha seguia-me para todo o lado e não deixava aproximar o Snoopy, rosnando-lhe com ar ameaçador. Eu ria-me, pois ela era pouco maior que uma pata dele.
Como os meus cães não entravam em casa, habituei a Piguy da mesma forma.
Fechava o portão ao fundo das escadas para os outros cães não entrarem, pois eles também gostavam de ficar deitados na varanda e ensinei-a a dormir no tapete, junto da porta.
Estava muito calor e a varanda era o sítio mais confortável da casa. Eu fazia-lhe companhia até tarde, aproveitando o fresco da noite.
Quando entrava, para ir buscar um bolo ou um refresco, ensinei-a a esperar à porta e ela obedecia com ar conformado.
Conversava com ela e ela entendia-me. No 4º ou 5º dia já não havia lágrimas, mas risos e brincadeiras. Ela era muito inteligente e eu adorava fazer testes à sua compreensão.
Os dias passaram num piscar de olhos.
O meu irmão veio buscá-la, mal chegou ao Fundão.
Encontrou-nos no jardim e subimos a escada juntos. Quando entrámos em casa, a Piguy ficou à porta, no seu tapete, mas de cabeça erguida e curiosa.
O Tonô, que estava habituado a que ela o seguisse, olhou para trás e viu-a no tapete. Eu não disse nada. Ele comentou: - Oh! Estás muito bem educada!
Esperei que ele me pedisse para ficar com ela, não sei porquê.
Depois, fui eu a sugerir essa possibilidade. O meu irmão riu-se.
Quando descemos a escada, o Tonô entrou no carro e a Piguy ficou a meu lado.
Ele teve de chamá-la duas vezes até ela entrar.
Tive a certeza, então, de que lhe custava tanto a separação como a mim.
Subi a escada com o coração apertado e as lágrimas nos olhos.

13/04/2009

Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.


António Gedeão

21/03/2009

Cova da Beira, Março em flor

Em Fevereiro a Serra expunha orgulhosa o seu manto de neve e apesar do frio gelar os ossos mal saíamos de casa, muitos turistas vieram aproveitar o Carnaval e fazer ski, dando uma vida efervescente à quietude da paisagem.
De um momento para o outro, o Sol transformou as encostas e deu-lhe um brilho diferente.
As cerejeiras estão em flor e a Gardunha está vestida de noiva. Continua branca, mas com ar mais sorridente.
A mutação das cores da minha terra é um espectáculo que sempre me impressiona.
Do branco imaculado da neve, no Inverno, depressa passa ao rosado das cerejeiras, macieiras e pereiras em flor, ao rosa forte das ameixeiras e ao rubro de fogo e amarelo alaranjado dos espinheiros.
Nos quintais das casas antigas, cameleiras sem idade brindam-nos, radiosas, com múltiplos arco-íris das suas camélias.
Nos arredores as pequenas flores do campo bordam tapetes nos chãos por lavrar.
A Cova da Beira está em festa, para dar as boas vindas à Primavera.
À tristeza de ver os campos agrícolas de 1ª qualidade abandonados às silvas e às ervas daninhas, contrapõe-se este deslumbramento de verde, salpicado de cores garridas, que o calor do Sol espalhou por todo o lado.
Nestes tempos, em que só ouvimos falar de crise, empanturram-se os nossos olhos de beleza e os nossos pulmões de ar perfumado, sem necessidade de regatear.
As forças renovam-se e como a Natureza, estamos prontos a florescer em entusiasmo e criatividade.

20/03/2009

Na quinta

Como eram conhecidos todos os ruídos e silêncios dos dias passados na quinta.
Muito cedo o galo experimentava o seu despertar de forma aguda e senhorial. Antes dele, no entanto, já mil passaritos chilreavam na nogueira do jardim, esperando que os pais lhes enchessem a barriga.
Com a chegada dos trabalhadores, a manhã enchia-se de vozes e de novos sons - portões, motores, alfaias que cantarolavam nos toques do ferro.
Faziam ruído na pedra miúda os passos caminho abaixo e vinha o silêncio de novo.
Na cozinha, a cafeteira que faria o café, as portas que se abriam e a água a correr em som de cristais tilintando suavemente.
Se chegava alguém, se ao longe cantavam, se caía uma maçã ao toro da macieira mãe, tudo se ouvia na quietude do campo.
No jardim alguém regava e o cheiro da terra era macio e fresco.
O cão Serra da Estrela dava um ar da sua graça de vez em quando, mostrando estar atento e lembrando a primeira refeição do dia.
Todo o dia os sons se iam repetindo e por isso eram tão familiares.
E se de madrugada os passarinhos eram os primeiros a dar a alvorada, à tardinha, depois de grande algazarra a aconchegar nos ninhos, ficavam quietinhos, quietinhos, dando ao entardecer uma calma que anunciava a noite.
As luzes, ao longe, brilhavam e só elas lembravam que outras pessoas viviam na Terra.
A ligeira aragem da noite, trazia o perfume das rosas abertas em ramalhetes no jardim e na varanda o repouso de um dia atarefado era a oração de agradecimento pela fartura e pela paz.
Em conversa amena, a contar de histórias recentes ou antigas, quase sempre com exageros e risadas, ou em dormitar meio alerta, as horas passavam depressa.
Estávamos todos, não havia temor nem saudade.

17/03/2009

A Beira e a sua música.

Oh Castelo Branco, Castelo Branco
Mirando o cimo da serra
Ai, mirando o cimo da serra!

Ai. quem nasceu lá em Castelo Branco,
Nao é feliz noutra terra
Ai, mirando o cimo da serra...

Eu nasci na beira, sou homem pequeno
sou como o granito bem rijo e moreno!
Eu nasci na beira, sou homem pequeno
sou como o granito bem rijo e moreno!

la la la la laaaa laaaa
la la la la laaaa laaaa
la la la la la laaaa
la la la laaa

Meu bem quem me dera, lá nos altos montes,
andar ao sol todo o dia
Ai, andar ao sol todo o dia...
Beber água fresca lá pelas fontes
Cantar como a cotovia
Ai, andar ao sol todo o dia

Coraçao da serra nao ama a cidade
Só na sua terra se sente à vontade
Eu nasci na beira, sou homem pequeno
Sou como o granito, bem rijo e moreno

la la la la laaala la la la laaaa
la la la laaa
la la la la laaaa


Se quiserem ouvir a música podem visitar este site http://www.jf-castelobranco.pt/turismo_lazer/default.asp?op=14

(In blog Mente Flutuante)

05/03/2009

Cartas de Amor




Também recebi cartas de amor. Quem diria?


Recebi cartas de amor de todas as maneiras e feitios.


Quando um rapaz gostava de uma rapariga, não tinha forma de lhe mandar um sms ou um email.


O telefone estava na sala para uso de toda a família, por isso os miúdos não se arriscavam a ligar para a amada e responder de lá o pai.

Mesmo assim, já muitos se aventuravam a ligar (e o contrário também é verdadeiro). Se atendesse o pai ou a mãe, perguntavam pela menina e diziam que era um amigo. Geralmente só faziam isto se soubessem que os pais não eram de se zangar.

Eram as cartas que levavam os sentimentos às amadas. Cartas escritas cuidadosamente, passadas a limpo vezes sem conta e cada palavra escolhida para impressionar.

É que essas cartas teriam de demonstrar o melhor possível o que os autores sentiam, sob pena de não virem a obter resposta.

Quando não gostávamos dos autores das declarações, tudo servia para fazermos troça, para ridicularizarmos o acto e o autor, para rirmos dias a fio.

Se o desgraçado usava alguma palavra mais elaborada, em vez desta servir para conquistar, era a sua sentença de morte.

Aconteceram muitas destas, comigo. Aliás, parecia que atraía aqueles que eu menos gostava! Os que me faziam suspirar, nunca me escreviam cartas de amor.

Havia um "Romeu" que passava dias inteiros à porta do café em frente da minha casa, a olhar para a minha janela. Como é que eu sabia, não é? Pois, eu ia para a janela...

Toda a gente sabia que ele morria por mim, mas ele não tinha coragem para confessar os sentimentos que o levavam a fazer sentinela na porta do café, fizesse frio ou calor, fosse de dia ou de noite. (Ele estudava no mesmo colégio que eu e não faltava às aulas, claro, pois eu também lá estaria). Um dia, passadas várias estações do ano, amigos comuns fizeram de correio e trouxeram-me uma carta do Romeu da porta do café.

No intervalo das aulas abri a carta, que me estava a intrigar de tão magrinha que vinha.

Era um simples cartão de visita com meia dúzia de palavras de amor escritas em letra miudinha.

Eu não queria acreditar! Um cartão de visita?

Quando começou a cena da troça e da risada, um deles veio em sua defesa, dizendo:

"Mas quem é que entende as mulheres? Ele mandou fazer os cartões e estava tão orgulhoso... agora vocês põem-se com essas coisas! Ele estragou uma série de cartões e tudo!"

Outra vez, o meu irmão fez de correio e trouxe-me uma carta de um amigo dele. Como eu já sabia de quem era, avisei as minhas amigas e fomos juntas lê-la.

Era muito elaborada, cheia de palavras caras e letra rebuscada. Ríamos como loucas de cada vez que ele falava num tal "laço férreo", que nós transformávamos em "laço de ferro".

No fim de todas as juras e promessas ele pedia: "Espero que esta carta fique só entre nós"

Ainda uma terceira. Não me lembro quem ma entregou, nem se eu já notara no arrastar da asa daquele pinga-amor. Sei que a carta vinha muito bem dobradinha, com várias dobras de canto, a fazer feitios, a letra muito pequenina e certinha, como se fosse de uma criança da primária, papel colorido e perfumado.

Parecia que nada haveria a apontar, embora aquelas miudezas todas me tivessem logo irritado.

Quando comecei a ler, lá estava a causa da risota.

Eu lia alto: " O meu coracao, bate tao forte quando te ve, que a respiracao para e a palpitacao faz saltar o peito". Meu Deus! Ao "passar a limpo" o rascunho, que deve ter feito dezenas de vezes, esquecera todas as cedilhas e toda a acentuação.

Durante imenso tempo rimos ao lembrar a "palpitacao do meu coracao".

Bom, só resta dizer que se estes erros viessem daquele que era especial para nós... até achávamos giro! Até seria romântico!

Adolescente é mesmo um caso sério.



25/01/2009

A neve.

Quando cheguei perto de Alpedrinha, começou a nevar.
Os farrapinhos, brancos e muito leves, dançavam em frente da luz dos faróis e colavam-se no pára-brisas. Dentro do carro estava quente e o rádio transmitia uma música que me fazia companhia e me ajudava a percorrer os últimos quilómetros. Imaginava o frio lá fora.

Lembrei-me então dum fim-de-semana em que os meus cunhados, com o filho Rui, ainda recém-nascido, foram connosco ao Fundão. Quando chegámos estava muito frio e o céu era cinza claro.
A lareira estava acesa desde manhã cedo, a primeira coisa que se fazia na casa dos meus pais, mas apesar do calor na sala, notava-se logo a baixa temperatura nas outras divisões da casa. Arrefecera de repente e doíam-me os ossos da cara de cada vez que ia à varanda buscar lenha para a lareira. Quando nos deitámos, a minha mãe foi aquecer-nos os lençóis com uma braseira, pois de tanto frio, pareciam molhados.
O Rui, coitadito, chorava e não dormia. A minha mãe lembrou-se que ele tinha frio, tirou-o da cama, abriu a arca dos cobertores, dobrou em 4 um cobertor muito fofinho e deitou-o no meio, como se metesse uma carta no envelope. Com a arca aberta, no meio dos cobertores de lã, o Rui sossegou e dormiu toda a noite, muito quietinho.
Pela manhã, quando me levantei para ajudar a preparar o pequeno-almoço, olhei pela janela e não contive uma exclamação de surpresa.
Toda a quinta estava coberta de neve. A paisagem a perder de vista era de um branco imaculado. As árvores quase quebravam os ramos com o peso e até os fios da electricidade arqueavam com a carga a que não estavam habituados. Nem uma pegada modificava o tapete que a natureza estendera pelo campo.
Chamei o meu marido e os meus irmãos. Daí a pouco toda a casa estava em alvoroço.
O meu pai avisou que ia tentar chegar ao Fundão para trazer pão fresco.
Saíram todos atrás dele para tirarem fotografias.
Qual não é o meu espanto, quando vejo o pobrezinho do Rui, com pouco mais de um mês de idade, ser colocado num monte de neve para ser fotografado.
E não foi a única foto deste género. Logo que o meu pai voltou e disse ter conseguido transitar no Fundão, quiseram ir e fazer novas fotografias. Mesmo com os meus protestos, o Rui foi deitado numa das escadas do Pelourinho e de novo registada a cena para o futuro!
A neve era sempre uma festa, mesmo para nós que estávamos mais habituados. Os meus cunhados nunca a tinham visto e ficaram entusiasmados.
O Rui sobreviveu.
Com estes pensamentos cheguei ao Fundão.
Toda a noite caiu uma neve fraquinha que apenas deixou um pequeno tapete nos jardins e os passeios muito escorregadios.

24/01/2009

A surpresa

De Castelo Branco a caminho do Fundão, a auto-estrada faz-se rápido e pouco oferece aos olhos de quem viaja sózinho na noite sem luar.
Depois de atravessar o Túnel da Gardunha tudo muda.
O que antes era um vale escuro, apenas com a Covilhã iluminada no sopé da Serra da Estrela, meia dúzia de luzes mais à frente indicando o Tortozendo e depois o Fundão aconchegado na Cova da Beira, agora é um mar de luzes, um presépio montado em todo o vale.
Deus encheu as mãos de luzes e espalhou-as pela Cova da Beira, como lavrador deita o adubo à terra, nas searas acabadas de semear.
Apetece parar e ficar a apreciar aquele momento, em que a nossa terra é protegida pelas duas montanhas e dorme num leito cheio de brilho, como num conto de fadas.

Inverno

Os dias estão maiores!
"Pelo Natal, um pulinho de pardal
Em Janeiro, uma hora por inteiro".
Também estão mais invernosos, mais cinzentos, mais ventosos, mais soturnos.
Mas sabemos que em breve as folhinhas começarão a aparecer tímidas e cautelosas, nos olhos das ramadas, da terra húmida e vazia brotarão orelhitas verdes de plantas, que acordam do descanso habitual no final de cada Verão luxuriante e voltará a Primavera.
Na renovação da natureza, se renova a nossa esperança.
E ao que hoje nos parece tão difícil, a luz do Sol dará outro sentido. As cores ficarão mais vivas e os horizontes mais claros, mais luminosos.
O Inverno faz falta. É um período de repouso, de reflexão, de encorajamento. Sem as agruras dos seus dias chuvosos e gelados, não apreciaríamos o ar morno das tardes soalheiras, o colorido dos campos em flor, o verde viçoso da folhagem renascida da seiva adormecida.
Adoro o Inverno, porque me traz lembranças da minha terra, da minha infância, dos campos brancos de geadas matinais, do calor da lareira com troncos incandescentes e crepitantes, bom de sentir, de cheirar e de ver, do calor que espevita os sentidos, do recolhimento dos campos em que as árvores se despem e os terrenos se cobrem de musgos fofos e de tons fortes e repousantes.
Talvez eu aprecie o Inverno porque sei que é breve e logo dará lugar à época em a Natureza mais brilha. Mas a Serra da Estrela coberta de alvo manto, ou a da Gardunha castanha rosada, nas mil árvores despidas do verde da folhagem, são cenários conhecidos que me tranportam para o que eu sou, para o que amo, para o que eu sempre fui e me fazem esquecer a dureza com que me julgam e me tratam tantas vezes.
Neste dia de Inverno, chegam-me à memória lembranças, como andorinhas na Primavera, que ao reconhecerem o antigo lar, refazem as suas paredes juntando ramos e lama deixado ao acaso pelos dias de mau génio.

19/12/2008

O Presépio

Quando passámos a viver na quinta, o tempo mais esperado era o Verão e logo a seguir o Natal.
No Verão era a rua, o ar livre, a piscina, a bicicleta, o jardim, a azáfama da apanha da fruta, os dias grandes e as brincadeiras todos os dias reinventadas.
Mas mal vinham os primeiros dias de frio, começavamos a pensar no Natal.
O que mais me entusiasmava era fazer o presépio.
A procura das caixas onde tinham sido guardadas as figuras, a compra de figuras novas para enriquecer o cenário do estábulo onde colocaríamos a Sagrada Família, a escolha do lugar para ser montado, eram temas constantes das conversas com os meus irmãos e com a minha mãe.
Era feito, a maior parte dos anos, em cima da lareira da sala pequena, por estar perto de nós todos a maior parte do dia, já que era ali que tomávamos as refeições e a minha mãe passava o seu tempo a bordar ou a fazer renda.
Começavamos por desembrulhar os pequenos figurantes de barro- pastores, ovelhinhas, reis magos, anjos e muitos outros, que ano após anos iam enchendo as caixas dos sapatos, onde esperavam pelas luzes da ribalta.
Depois íamos ao Fundão comprar outras, que tinhamos visto nas montras das mercearias da Rua da Cale.
Pedíamos algodão em rama, papel de prata e um vidro, à mãe. Trazíamos a serradura e os pausinhos da oficina de marcenaria.
Colávamos os pausinhos até ter uma cerca para o rebanho e uma pequena ponte para o riacho.
Separávamos a Igreja, as casinhas e as pessoas que formavam a aldeia. Depois os pastores com as ovelhinhas às costas e algumas ovelhas para os seguirem. Os 3 Reis Magos nos seus camelos, a estrela para o cimo da cabana, a vaquinha e o burrinho eram os últimos a ser separados.
A caixa de sapatos, onde tinhamos metido com todo o cuidado a Mãe, o Pai e o Menino, era a última a abrir.
Para contruirmos a cabana e a manjedoura, pedíamos sempre ajuda. Encarrapitados numa cadeira, espreitávamos com todo o interesse o colocar de pequenos troncos por mãos mais experientes.
Papel amachucado era colocado a formar algumas montanhas, lá atrás, bem junto da parede da chaminé. O Presépio começava a tomar forma e nós não parávamos quietos, nem calados.
A etapa seguinte era a minha preferida. Com uma cesta da fruta, íamos percorrer a quinta até a enchermos de placas de musgo verde e fofo, para que o presépio ficasse mais bonito.
O frio deixava-nos de nariz encarnado e o peso do cesto fazía-nos dobrar as costas e arrastar os pés, mas nem assim deixávamos de andar depressa, de tagarelar, de rir, de gritar as palavras que o alvoroço nos sugeria.
Cada pedaço de musgo era colocado, com cuidado, a atapetar o chão da cabana, em seu redor e em cima do papel para formar as elevações. Um vale estreito era deixado para passar o riacho, que acabava num pequeno lago. Rematavam-se muito bem os limites do presépio, para que o musgo não caísse quando, com o calor da sala, ficasse mais seco e frágil.
Afastávamo-nos todos, para olhar de longe e ter noção mais exacta da cabana no canto e das montanhas atrás.
Para simular a água, as pratas dos chocolates. Ali em cima, o moinho. Ao centro, a ponte. Aqui ao lado, o lago com o vidro, para dar brilho.
A Igrejinha ali, não, todos gritávamos, lá, ali, ali, com as casinhas à volta. Mais além, o rebanho dentro da cerca.
Para delinear os caminhos, a serradura da madeira clara.
A estrela era presa por cima da cabana. O anjo, velava pelo estábulo.
Era a vez do Menino ser deitado nas palhinhas, com a Nossa Senhora à sua direita e o S. José à sua esquerda, olhando-O com ternura. Atrás o burrinho e a vaquinha respiravam junto do Menino, para o aquecerem com o seu bafo morno.
Cá fora, os pastores com as ovelhinhas ao ombro. De longe, os 3 Reis nos seus camelos, aproximavam-se vagarosamente. O algodão era então bem esfarrapado, para parecer neve. Uma lâmpada escondida atrás da cabana, iluminava o presépio de noite e de dia.
Agora, a ansiedade crescia na espera da noite da Consoada, em que estaria presente toda a família, da cozinha chegava o cheiro da canela no arroz doce e depois da Missa do Galo encontraríamos um presente no nosso sapato, deixado na lareira, junto do presépio.
No dia 6 de Janeiro, os Reis Magos chegavam ao estábulo e era hora do presépio ser de novo embrulhado e descansar mais um ano, nas caixas de sapatos.
Então, voltávamos para a escola a exibirmos a prenda que o Menino Jesus nos trouxera.

01/12/2008

Natal, Natal!

E chegou de novo o mês de Dezembro... O mês mais longo do ano!
Está frio, não apetece sair da cama de manhã. Não apetece andar na rua. Chove e é penoso entrar e sair do carro.
Só se ouve falar do Natal.
Árvores com 30 mts de altura e 60.000 lâmpadas. Montras com enfeites coloridos e brilhantes para chamar ao consumismo.
Prendas que se dão, porque é hábito dar.
Comida, roupas, enfeites, tudo, porque é Dezembro.
Quem se lembra do nascimento de Jesus?
Depois vem o fim do ano. Roupas bonitas para ir dançar e cear a um sítio in, a um hotel ou casino podre de chique.
E quem não tem dinheiro para prendas? Quem não tem emprego, casa, paz, saúde, liberdade, família ou apenas gosto por toda esta festança?
Dezembro é um Pai Natal obeso, vestido de cor ridícula, inventado para crianças ricas, para pais ricos, para países ricos. O Pai Natal é o simbolo do esbanjamento, do consumismo, do markting e da publicidade vencedora. É Dezembro das lojas e das prendas, não da família e do presépio.
São renas e trenós em vez de pastores e pequenas ovelhinhas de pelo anelado. São árvores de plástico, em vez de pequenos povoados feitos de musgo e serradura, são montes de prendas, em vez da Missa do Galo, são bolas e fitas, em vez de canções de Natal à consoada.

"Oh meu Menino Jesus,
Oh meu Menino tão belo
Logo tu foste nascer
Na noite do caramelo"

Mês de solidão, de saudade, de lembranças, de desejos e de duras realidades.
Mês vestido de encarnado, com laços dourados, luzes intermitentes, canções com guizos e coros de crianças a um "Menino em palhas deitado".
Quem me dera em Janeiro, livre de Almoços de Natal com os colegas, jantares de Natal com os patrões, escolha de prendas que não agradam a quem as dá, nem a quem as recebe, livre das trocas nas lojas, das montras atafulhadas de adereços de ouros e pratas, das árvores sem trambelho com estrelas no topo, dos troncos de chocolate mal amanhados, dos fritos areados, dos tubos iluminados e enroscados por tudo o que é sítio, das fitas franjadas e dos papéis com desenhos estrelados, dos laços de pontas encaracoladas, que nada atam.
Quem me dera já no sossego de Janeiro, em que ninguém tem dinheiro e por isso não enche as lojas, esperando horas em filas paradas, para pagar meia dúzia de bugigangas que não servem para nada. Dezembro é um mês fanfarrão que acaba com copos e farra, esquecendo quem não tem ordenado, nem subsídio de Natal.
E logo a seguir, outra estopada... O Carnaval.

Anita

A Amizade é um sentimento inteiro.
A Amizade verdadeira nunca esmorece, nem que passe por silêncios e ausências.
Não é interesseira, não é orgulhosa, não toma partidos diferentes consoante os humores.
Não se pede, não se vende, não se compra, não se avalia, não se pesa, não se mede.

Dá-se, dá-se, dá-se sempre, sem condições, sem obrigações, sem restrições.


A Amizade verdadeira tem nome- Anita



18/11/2008

Ter a Natureza como ama

Quando penso na infância que eu e os meus irmãos tivemos, acho sempre que foi uma sorte termos nascido numa pequena vila do interior de Portugal.
As pessoas que falam com ar trocista de quem vive nas aldeias das Beiras, quando lhes reconhecem um sotaque de xs arrastados, não sabem como essa característica não os desmerece, mas antes os destaca de imediato como previlegiados.
Ainda hoje pude confirmar isso num curso que fiz e onde estavam colegas da Guarda, Beira Alta.
Quando intervinham nas matérias que estavamos a debater, havia sorrisos em alguns outros, mais citadinos, que reparavam nos seus zs em vez de ss.
A forma de dizer certas palavras, varia de zona para zona e não é novidade para ninguém como é diferente no Porto e em Lisboa, em Faro e em Évora, em Castelo Branco e em Viseu.
Em Faro e em todo o Algarve, as palavras terminadas em o, passam a terminar em e. "Fui buscar um pane para limpar o sapate do moçe".
No Porto diz-se "Estive a ver televisõe todo o serõe" e em Lisboa dizem "Vou à pisxina".
"Cada roca com seu fuso e cada terra com seu uso", diz o povo.
Foi então que a certa altura, os colegas da Guarda quiseram mostrar umas fotos duma iniciativa que levaram a cabo no serviço. Era um passeio em bicicleta com crianças e funcionários de todas as idades.
Via-se a Serra da Estrela magestosa nos seus vales e encostas, com um véu ténue de nuvens, ora mostrando, ora escondendo os verdes de tons escuros, o imenso céu que nesse dia até estava mais cinzento que azul, mas mesmo assim muito bonito, as árvores por aqui e por ali, num ambiente de ar puro, de sossego e de partilha com a Natureza, que o passeio de bicicleta proporcionava.
O barulho dos camiões, dos carros, das buzinas, o fumo dos escapes, a correria das pessoas e a indiferença para o que se passa à sua volta, a sujidade dos passeios, o mau cheiro que sai das portas entreabertas dos edifícios antigos, as paredes que os olhos se habituam a ver como limite tão curto do seu horizonte, não é a realidade que aquelas crianças conhecem e que só vivem como novidade numa visita com os pais às cidades grandes.
Passear a pé ou de bicicleta, sentar no muro e olhar lá para longe, até todos os contornos de casas e de aldeias desaparecerem como minúsculos pontinhos, sentir o frio na cara e nas mãos, o odor dos pinheiros e dos eucaliptos, ouvir o ar entrar e sair do peito, porque não há outro barulho a incomodar, enfim, as sensações que eu conheci durante toda a minha infância e adolescência, é um privilégio. A nossa terra, a nossa casa, a nossa família, os nossos amigos e os nossos costumes estão presentes e acompanham-nos no crescimento, sem darmos por isso.
Quantas vezes, depois de estar já há algum tempo em Lisboa, me apeteceu ter força para conseguir empurrar os prédios, fazer calar por segundos o trânsito e as pessoas, poder olhar para longe sem que o meu olhar fosse atroplelado logo a um palmo do nariz.
Brincar no quintal, no jardim, na terra, no ribeiro, correr, molhar-me a regar as flores, sentar-me na escada da rua a vestir as bonecas, dormitar em cima da cama com o sol a aquecer-me os pés e apenas ouvir de vez em quando o zumbir de algum insecto no seu vai vem atarefado, era o dia a dia que eu sentia acarinhar-me, como ama cuidadosa.
Ir buscar os ovos ao galinheiro, comer a canja ao almoço de domingo, grelhar a carne nas brasas formadas na lareira acesa desde cedo, tudo com um sabor próprio, sem selos de metal ou carimbos do supermercado.
Lembro a maçã bravo esmolfe que perfumava a sala, a uva vermelha de bago rijo, que aguardaria pelo Natal para ser colhida do prego, onde fora pendurada para se conservar.
Todos os perfumes, sabores e texturas tão conhecidos e apreciados, ajudaram-me a ser quem me reconheço.
Esqueci os filmes que vi no balcão do velho cinema, mas não esqueci a emoção de entrar e ir olhando os cartazes com os ídolos que eu admirava.
Esqueci os pormenores, mas o essencial ficou, grudado à pele, circulando nas veias, enchendo as minhas lembranças.
Que pena tenho de ver os meus netos crescer na cidade e não aproveitarem mais este ar da Serra, o silêncio das noites, os pássaros no quintal e as borboletas nas flores.
Como amei sempre o meu lugar e como continuam lá as minhas raízes!

04/11/2008

Maunça, Açor.


"Fundão Artes e Sabores da Maúnça
Um dos eventos mais saborosos do ano. A tradicional mostra gastronómica na aldeia de Açor, Castelejo (Fundão). Haverá tasquinhas, animação de Rua e um magusto comunitário.
A Festa da Castanha ou Artes e Sabores da Maúnça está cada vez maior, havendo cada vez mais cuidado na escolha de conteúdos de qualidade. Talvez a maior festa de gastronomia regional do concelho do Fundão.
Neste fim-de-semana, as portas das casas abrem-se para o visitante.
Cada casa, na sua loja, na sua sala, na garagem ou no armazém, são "Restaurantes ou Lojas", onde nos podemos deliciar com os seus sabores: o coelho no azeite, a chanfana, os brulhões ou maranhos, o cabrito assado, o feijão com couves acompanhado de carne da salgadeira e enchidos fumados, servidos com muita gentileza, pão caseiro e vinho da Maúnça.
E as sobremesas da castanha, arroz doce, miaus, os queijos "corno" e à ovelheira ou cabreira.
Depois ajudamos a digestão com licores originais como o da castanha, a aguardente de medronho e mel e uma caminhada pelas "tasquinhas", na mira de mais uma gulodice ou para apreciar o artesanato local com grande incidência no tema dos "sete martírios do linho".
Venha daí. Dias 8 e 9 de Novembro. "
Enviado pela Marta.

01/11/2008

Shangai e Londres (ou Nova Iorque)

Este fim de semana foi "a noite das bruxas"...
Todos os dias se compram mais produtos "made in China"...
O Fundão está cada vez mais no mundo.
Cheguei para ficar uma vez mais com a minha mãe, a noite estava chuvosa e fria.
Anunciavam neve para a Serra da Estrela.
Mal saí do carro dei logo com as obras na loja chinesa.
Ali, no rés do chão do prédio onde a minha mãe vive, havia um supermercado óptimo.
A qualquer hora do dia que precisasse de café, farinha, leite ou lexívia, era só descer no elevador e... voilá. Mas o dono do supermercado foi vencido pelo pagamento elevado que um cidadão de Shangai, muito atencioso, lhe ofereceu por aquele espaço, no centro da cidade, em frente do mercado municipal. E foi assim que o supermercado se transformou em "loja do chinês" com tudo à venda daquilo que eu não preciso e nada do que me faz falta.
Ao lado, uma perfumaria dava-me sempre hipótese de adquirir a prenda, que só à última hora me lembrara ter de dar.
Perfumes maravilhosos, em caixas lindas e frascos autênticas obras de arte. Enfim, uma alegria para os olhos.
Parece que era assaltada com frequência... disseram-me.
Lá se foi também a perfumaria e o senhor de Shangai, entre dois sorrisos e duas pequenas vénias (cada vez mais pequenas, pois ele acha que "em Roma, sê como os romanos") pôde estender o seu negócio, deitando apenas uma parede abaixo!
Entrei em casa e daí a pouco estavam a bater-me à porta montes de garotos barulhentos, a pedir doces.
-É a noite das bruxas! É a noite das bruxas! Doçura ou travessura! Doçura ou travessura!
O meu Fundão está muito mudado... muito global!
(A imagem que lembrei naquele momento, foi a de um documentário sobre os Índios na selva amazónica do Brasil, que vestiam t-shirts com publicidade à coca-cola e usavam boné com o símbolo da adidas).
Se os mais novos foram pedir doces de porta em porta e sujar de farinha as entradas daqueles que não deram nada, (a minha ficou em estado deplorável!) os mais velhos carregaram ramos de crisântemos para o cemitério, enfeitando as campas daqueles que perderam, mas continuam a lembrar e a amar. Após o Dia de Todos os Santos (até do Santo de Pau Carunchoso e do São Nunca à Tarde, como eu dizia quando era pequena) é o dia dos Finados, dia de rezar uma pequena prece por alma dos que partiram da nossa casa, da nossa terra, mas não do nosso coração.
Se "noite de bruxas" é novidade importada, que seja... ser novidade já é bom, digo a mim mesma, para me convencer a aceitar todas as modernices que nos impingem.
Também o foi o Dia de S. Valentim e é um dia bem simpático! Pelo menos, para quem tem namorado.
E de dia em dia, de festa em festa... nos vai suando a testa!

26/10/2008

Trovoada na quinta.

Música. Ouvia uma música muito em voga e lia um autor desconhecido. Notas de música e linhas de letras revezavam-se. Letras e música.
O céu fechava-se em nuvens escuras e ameaçadoras, arrastando o ar pesado e difícil de respirar. De um momento para o outro parecia ter anoitecido.
Os fins de semana na quinta, quando o Sol brilhava, eram uma festa e as horas passavam a correr. Mas naquele domingo arrefecera muito e a luz que entrava pelas janelas, apesar de se ir a meio do dia, era cinzenta e opaca, obrigando a acender o candeeiro para conseguir ler mais um pouco.
O casacão que vestira, parecia fino para aquele frio que atravessava a roupa e cortava os ossos.
Espreitei pela janela. O vento soprava cada vez com mais força, sacudindo as árvores e deitando ao chão as folhas que anunciariam o Outono.
De repente, um clarão rasgou o manto escuro que cobria o céu e por um instante fugaz, iluminou toda a parte da quinta que avistava da janela. Um arrepio gelou-me, não sei se de frio, se de susto. Sentei-me à mesa onde tinha os meus livros, depois de correr os cortinados para evitar a entrada do frio pelas frestas da velha janela de madeira.
Um trovão voltou a chamar-me a atenção para o temporal que se aproximava.
As folhas avermelhadas que teimavam em ficar mais um tempo nas árvores antes do Inverno, eram sacudidas freneticamente e deitadas ao chão, sem dó nem piedade.
Outro clarão e logo a seguir outro estrondo enorme que parecia abanar a casa desde as fundações. As trovoadas, no Fundão, foram sempre as maiores, mais assustadoras e mais insistentes que conheci toda a vida.
Com um novo relâmpago, a luz da sala apagou-se e fiquei às escuras, como se fosse noite avançada.
Sabia que tinha de esperar com paciência que a trovoada passasse e a electricidade fosse reparada. A televisão, que eu ligava mal entrava em casa, para me fazer companhia e para ouvir alguém falar, estava muda. A braseira eléctrica que me aquecia sob a fralda da mesa, arrefecera.
O vento soprava cada vez com mais raiva, assobiando com fúria pelas frestas das portas e os primeiros pingos grossos de chuva ameaçavam partir os vidros da janela.
Eu esperava que voltasse a electricidade e estremecia a cada relâmpago que me mostrava toda a sala, a cada trovão que abanava o chão sob os meus pés.
Apertei o casaco, cruzando-o no peito e aconcheguei a gola bem junto ao queixo.
Não tinha luz suficiente para ler, não tinha televisão, não me apetecia estar ali ao frio.
Comecei a contar quantos segundos demorava a chegar o trovão, depois do raio rasgar o véu negro de nuvens, para saber se a trovoada se aproximava, ou se afastava.
Estremeci com o estrondo que seguiu o raio de luz, mesmo por cima da minha cabeça. Começava a ter medo. Era sempre assim... quando o trovão vinha logo atrás do relâmpago, o castelo de nuvens unia-se para despejar todo o céu no vale do Seixo, enquanto eu tremia, gelada e impotente. De um sopro, o vento abriu a janela do quarto dos miúdos. Fui fechá-la e tive de limpar o chão encharcado.
Aproveitei para verificar as outras janelas e trouxe uma manta, que coloquei pelas costas.
Estes minutos duravam horas... eram horas terríveis de escuridão e de pavor.
A Natureza que eu tanto amava, mostrava o seu lado mais medonho, a sua força e o seu querer. Eu continuava na sala, agora completamente às escuras, e só os móveis continuavam indiferentes ao temporal, atrevendo-se mesmo a competir com a Natureza na mostra de sombras imensas e distorcidas, de cada vez que os relâmpagos invadiam a casa e a tornavam salão de baile de fantasmas.
Às vezes, a espera durava longas horas... lembrei-me disso e fui à cozinha procurar uma vela e fósforos.
Não podia ir buscar lenha para a lareira com aquela chuvada. Tinha frio e estar às escuras era penoso. Qualquer barulho diferente na rua ou nos quartos do fundo, deixavam-me alerta.
Contei segundos entre o raio e o trovão, pensei em tarefas que aguardavam por mim no dia seguinte, imaginava a dança que a chuva ensaiava no terraço e nas vidraças... desesperava.
E já cansada de me controlar, de me encher de força para não ter medo de cada vez que os portões da garagem batiam com a força do vento, peguei na manta e fui deitar-me. Um relâmpago que caíra mais perto, fez o telefone tocar e deixar de funcionar. Sabia que nada mais havia a fazer. A vela gastava-se e eu gelava.
Abri a cama, deitei-me, aconcheguei a roupa no pescoço e tapei a cabeça.
Desejei que a tempestade se cansasse e fosse atormentar outra casa solitária na encosta da Serra.
Quando o silêncio voltou, não soube se era a trovoada com pena de mim, se o sono a aconchegar-me em seus braços .
Pela manhã ouviam-se os pássaros, os móveis reduziam-se a estáticos mamarrachos encostados ás paredes e o vento mais calmo, parecia fazer cantarolar os ramos mais nus das macieiras...
Era dia de novo e a vida parecia não ter memória.

20/09/2008

Os teus olhos castanhos...

Um conhecido meu, no Fundão, tinha um problema de dicção em que não conseguia pronunciar os cês.
No dia a dia, já se notava bastante a sua dificuldade, mas todos disfarçavam e pareciam não reparar na sua maneira de cortar as palavras.
O pior era a sua insistência em cantar nas festarolas e reuniões de amigos.
Mal se falava em serão entre amigos, lá estava ele a sugerir uma cantoria.
Todos sabiam já o que iria acontecer, mas não tinham coragem de lhe dizer, nem sequer de o contrariar.
Então, quando se punha de pé e pedia para cantar, era inevitável a música escolhida.
Todos sugeriam outra, fingindo que era só para variar, mas ele insistia. Era aquela que ele adorava e ninguém o demovia.
Certa vez houve uma noite de fados no jardim do Fundão e encheu-se de gente o jardim, para assistir. Correu bem e no final, os amadores foram convidados a participar. Aconteceu o que todos temiam... Ele não se fez rogado, subiu para o palco e pegou no microfone.
Começou :
-Eu _ueria _antar a minha _anção preferida, _ue já todos _onhecem... Os teus olhos _astanhos.
E lá se voltou a ouvir:
-Os teus olhos _astanhos, de en_antos tamanhos são pe_ados meus...

11/09/2008

Doze filhos de uma vez só...


Vi esta fotografia durante anos na malinha, onde a minha mãe guardava as suas recordações. Havia fotografias de pessoas amigas, de pic-nics, dos nossos aniversários, de viagens que os meus pais tinham feito, de primeiras comunhões e principalmente de casamentos.
Não sei quem deu esta fotografia ao meu pai, mas andava misturada na grande colecção que se podia encontrar na malinha.
De vez em quando ia ver todas aquelas caras que já conhecia, mas que continuavam sempre a ter alguma coisa de novo.
Esta era uma das que me hipnotizava, ficando a olhá-la durante longos períodos de tempo, não sabendo porquê, concretamente.
Ora me fixava nos leitões, contando-os vezes sem conta, ora mirava o seu tratador de mangas arregaçadas e chapéu preto.
Pensava que ele estava tão vaidoso, como a porca. Parecia-me sempre que ela se sentia a mãe e ele... o pai! Claro que o orgulho que o fez ficar na foto para a posteridade, me dava a ideia de que ele gostava tanto dos leitõesinhos, como se fossem seus "filhos".
Era apenas o facto do cuidado paternal que me vinha à cabeça, claro!
Os filhotes da porca pareciam-me iguais à mãe, não só na cor, mas nas orelhas espetadas que se vêem nos que estão de frente.
Era uma família completa!
Aquela corda preta que está a meio da parede, atrás do tratador, também me despertava curiosidade. Eu conhecia o hábito de plantar videiras à beira das casas, junto às portas, para puxar e fazer latada. No Verão, quando estavam plenas de rama e de uvas, davam sombra à soleira da porta, onde se sentavam à tarde, em cadeirinhas baixinhas, a conversar com os vizinhos ou a fazer renda. Como eram tirados os ramos que iam nascendo por baixo, a planta ficava esguia e sem folhas junto da parede, como o cabo de um guarda sol.
Quando a encontrei no fim de tantos anos, fiquei admirada por voltar a fazer a contagem dos leitões-penso que são 12- e a parar nos mesmos pormenores.
É mesmo um encanto. 12 filhos de uma vez!!!

06/09/2008

Alcongosta, Fundão

"No segundo fim-de-semana de Setembro, como sempre, realiza-se a festa de Alcongosta. Por isso tencionamos nos próximos dias dar especial atenção a esta temática. Uma festa que tem a curiosa particularidade de todos os anos ser organizada por quem completa 40 anos, uma forma pouco vulgar de definir quem são os festeiros. Apesar de as pessoas não terem o mesmo número de filhos que era habitual antigamente, a verdade é que a festa, com muitos ou poucos recém-quarentões, nunca deixou de se fazer. Este ano não vai ser excepção. Os cartazes já estão por aí com o programa, que inclui a inevitável procissão das velas, no sábado à noite, e a de domingo à tarde. Claro que a componente pagã não foi esquecida. Fica o encontro marcado para o ringue, então. Só que este ano quem faz a festa no próximo ano não sobe na segunda-feira ao palco, como é habitual, porque se decidiu encurtar até domingo. Certamente que o momento irá acontecer no último dia da festa. A fotografia em cima foi enviada pela Carla Rolão, sem identificar quem aparece. A ela, que gentilmente tem cedido material para o blogue, obrigado. Nos próximos dias vamos postar mais. Nomeadamente da Telma Rolão e da Ana Cláudia Ribeiro, que também já enviaram registos fotográficos e a que se presta aqui o devido agradecimento. Acontece que as imagens que chegaram são sobretudo da procissão, com o interesse de serem quase todas bem antigas. Era bom se o pessoal pudesse mandar mais coisas. Mais uma nota. A foto foi tirada na rampa da fonte, há uns 40 anos. Reparem que nenhuma das casas que se vê está de pé. Actualmente são as da Gracinda Rambóia, do Alberto Mendes e Víctor Bonifácio. Já agora, alguém sabe dizer quem são os festeiros este ano?"
In: pedacosdealcongosta.blogspot.com

Alpedrinha, Fundão

"novelos doces...

De 19 a 21 de Setembro irá decorrer o Chocalhos 2008, Festival dos Caminhos da Transumância, que trará ao Fundão as sonoridades do Mediterrâneo.
Haverá workshops, exposições e conversas em torno do universo pastoril e dos segredos feitos da lã.
Concertos, tasquinhas, artesanato, produtos tradicionais e muita animação de rua, onde com certeza o licor e doce de cereja não vão faltar. Um festival a não perder!"
in: coisasdecereja.blogspot.com

Amor para sempre

13/07/2008

O fim anunciado

Nasci no Fundão, onde estudei até terminar o liceu.
Sou filha, neta e bisneta de fundanenses.
No entanto, quando me interrogo sobre hábitos, costumes, palavras e lugares da minha terra, sinto que nada sei.
Andamos na escola, no colégio e saimos da nossa terra, para estudar e exercer uma profissão, sem sabermos interpretar as nossas raízes.
Tenho pena, porque à medida que procuro o que ficou para trás, vejo como tantas coisas se perdem, desaparendo para sempre, não só da vista, mas também da memória das pessoas.
E são essas pequenas histórias que originaram o que somos e fizeram a nossa História.
Cada cidade vai evoluindo, deitando por terra o que é velho e a identifica, para dar lugar a um novo descaracterizado e igual em todas as outras.
É como se lhes vestissemos uniforme.
Poderíamos evoluir sem perder o que existe, restaurando e preservando as características da nossa terra, para as darmos a conhecer aos nossos netos.
As casas de pedra dão lugar aos prédios de andares, as lareiras, aos aquecimentos centrais, os fornos a lenha comunitários, aos bolos de fábrica congelados e preparados para fazer na hora.
Tudo se moderniza e a nossa identidade desaparece.
Já não há festas populares com arraial, nem artesanato local. Os doces, os licores e as compotas são feitas em indústria própria e com as precauções da longa duração. Os pratos tradicionais, envergonham-se da sua simplicidade e enfeitam-se com bijuteria que lhes dá um ar estranho.
O cabrito no forno deixou para trás a assadeira de barro e aparece na mesa em pirex brilhante e transparente. O feijão verde frito com polme de ovo, está ausente das merendas e presente o frango assado no momento. O esparregado compra-se congelado, pois migar a rama de nabo, cozê-la, escorrê-la e fazer com ela o esparregado frito no azeite com um dente de alho, a que se junta o sal, a farinha e o vinagre, dá trabalho e tira tempo, que se pode utilizar em tarefa menos enfadonha.
A tradição e o sabor... esses deixam de ser importantes. Importante é ver a telenovela no horário anunciado, ou ir ao café na hora certa.
Os pimentos já estão assados e em frascos adequados. A massa tenra para os pastéis, já está confeccionada e em caixas de papelão, nas arcas dos supermercados. Os ovos verdes, quase desapareceram das entradas e já ninguém conhece o botelho frito. O arroz doce já não tem corações desenhados com canela.
Os meus filhos adoram ovos verdes, mas não os sabem fazer. (Porque é que se chamam verdes, perguntaram-me. Porque levam muita salsa picada, respondi.)
E assim ficam para trás as nossas coisas e tomam o lugar delas hamburguer, pizza e donuts.
Tudo tem um fim. Até nós teremos.